sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Trecho do Diálogo sobre a Conversão do Gentio

Os interlocutores são: Gonçalo Álvares (curador de índios) e Mateus Nogueira (ferreiro da Companhia).


Mateus Nogueira

Já que tanto apertais comigo, e me pareceis desejoso de saber a verdade deste negócio – creio  que vos tenho esgotado – dir-vos-ei o que muitas vezes martelando naquele ferro duro estou cuidando e o que ouvi a meus Padres por muitas vezes. Parece que nos podia Cristo, [que] nos está ouvindo, dizer: Ó estultos e tardios de coração para crer! Estou eu imaginando todas as almas dos homens serem umas e todas de um metal, feitas à imagem e semelhança de Deus, e todas capazes da glória e criadas para ela; e tanto vale diante de Deus por natureza a alma do Papa, como a alma do vosso escravo Papaná.


Gonçalo Álvares

Estes têm alma como nós?


Mateus Nogueira

            Isso está claro, pois a alma tem três potências, entendimento, vontade, que todos têm. Eu cuidei que vós éreis mestre já em Israel, e vós não sabeis isso! Bem parece que as teologias, que me dizíeis arriba, eram postiças do P. Brás Lourenço, e não vossas. Quero-vos dar um desengano, meu Irmão Gonçalo Álvares: que tão ruim entendimento tendes vós para entender o que vos queria dizer, como este gentio para entender as coisas de nossa fé.


Gonçalo Álvares

            Tendes muita razão, e não é muito, porque eu ando na água aos peixes-boi e trato no mato com brasil. Não é muito ser frio! E vós andais sempre no fogo, razão é que vos aquenteis. Mas não deixeis de prosseguir adiante, pois uma das obras de misericórdia é ensinar aos ignorantes.


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Gonçalo Álvares

            Pois como tiveram estes pior criação, que os outros, e como não lhes deu a natureza a mesma polícia que deu aos outros?


Mateus Nogueira

            Isso podem-vos dizer chãmente, falando a verdade, que lhes veio por maldição de seus avós, porque estes cremos serem descendentes de Cam, filho de Noé, que descobriu as vergonhas de seu pai bêbado, e em maldição, e por isso, ficaram nus e têm outras misérias. Os outros gentios, por serem descendentes de Sem e Jafete, era razão, pois eram filhos de benção, terem mais alguma vantagem. E porém toda esta maneira de gente, uma e outra, naquilo em que se criam tem uma mesma alma e um entendimento. E prova-se pela Escritura, porque logo os primeiros dois Irmãos do mundo, um seguiu  uns costumes e outro outros. Isac e Ismael ambos foram Irmãos, mas Isac foi mais político que o Ismael, que andou nos matos. Um homem tem dois filhos de igual entendimento, um criado na aldeia e outro na cidade; o da aldeia empregou seu entendimento em fazer um arado e outras coisas da aldeia, o da cidade em ser cortesão e político: certo está, que ainda que tenha diversa criação, ambos têm um entendimento natural exercitado segundo sua criação. E o que dizeis das ciências, que acharam os filósofos que denota haver entendimento grande, isso não foi geral benefício de todos os humanos dado pela natureza, mas foi especial graça dada por Deus, não a todos os romanos nem a todos os gentios, senão a um ou a dois, ou a poucos, para proveito e formosura de todo o universo. Mas que estes, por não ter polícia, fiquem de menos entendimento para receberem a fé, que os outros que a têm, me não provareis vós nem todas as razões acima ditas; antes, provo quanto polícia aproveita por uma parte, tanto dana por outra, e quanto a simplicidade destes estorva por uma parte ajuda por outra veja Deus isso e julgue-o. Mais fácil é de converter um ignorante que um malicioso e soberbo. A principal guerra, que teve a Igreja, foram sobejos entenderes: daqui vieram os hereges e os que mais duros e contumazes ficaram; manou a pertinácia dos judeus que, nem com serem convencidos por suas próprias Escrituras, nunca se quiseram render à fé; daqui veio dizer S. Paulo: Nós pregamos a Jesus Cristo crucificado, aos judeus escândalo e às gentes estultícia. Dizei-me, meu Irmão, qual será mais fácil de fazer? Fazer crer a um destes, tão fáceis a crer, que nosso Deus morreu, ou a um judeu, que esperava o Messias poderoso e Senhor de todo o mundo?

(Diálogo sobre a Conversão do Gentio, Lisboa, IV Centenário da Fundação de São Paulo, 1954, p. 88-89, 93-95).


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:


MASSAUD, Moisés. Origens e formação. In: MASSAUD, Moisés. A literatura brasileira através dos textos. São Paulo: Cultrix. 2007. p. 28-30.



Nóbrega e Anchieta com a tribo dos Tamoios




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