Os interlocutores são: Gonçalo Álvares (curador de índios) e
Mateus Nogueira (ferreiro da Companhia).
Mateus Nogueira
Já que tanto apertais comigo, e
me pareceis desejoso de saber a verdade deste negócio – creio que vos tenho esgotado – dir-vos-ei o que
muitas vezes martelando naquele ferro duro estou cuidando e o que ouvi a meus
Padres por muitas vezes. Parece que nos podia Cristo, [que] nos está ouvindo,
dizer: Ó estultos e tardios de coração para crer! Estou eu imaginando todas as
almas dos homens serem umas e todas de um metal, feitas à imagem e semelhança de
Deus, e todas capazes da glória e criadas para ela; e tanto vale diante de Deus
por natureza a alma do Papa, como a alma do vosso escravo Papaná.
Gonçalo Álvares
Estes têm alma como nós?
Mateus Nogueira
Isso está
claro, pois a alma tem três potências, entendimento, vontade, que todos têm. Eu
cuidei que vós éreis mestre já em Israel, e vós não sabeis isso! Bem parece que
as teologias, que me dizíeis arriba, eram postiças do P. Brás Lourenço, e não
vossas. Quero-vos dar um desengano, meu Irmão Gonçalo Álvares: que tão ruim
entendimento tendes vós para entender o que vos queria dizer, como este gentio
para entender as coisas de nossa fé.
Gonçalo Álvares
Tendes
muita razão, e não é muito, porque eu ando na água aos peixes-boi e trato no
mato com brasil. Não é muito ser frio! E vós andais sempre no fogo, razão é que
vos aquenteis. Mas não deixeis de prosseguir adiante, pois uma das obras de
misericórdia é ensinar aos ignorantes.
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Gonçalo Álvares
Pois como
tiveram estes pior criação, que os outros, e como não lhes deu a natureza a
mesma polícia que deu aos outros?
Mateus Nogueira
Isso
podem-vos dizer chãmente, falando a verdade, que lhes veio por maldição de seus
avós, porque estes cremos serem descendentes de Cam, filho de Noé, que
descobriu as vergonhas de seu pai bêbado, e em maldição, e por isso, ficaram
nus e têm outras misérias. Os outros gentios, por serem descendentes de Sem e
Jafete, era razão, pois eram filhos de benção, terem mais alguma vantagem. E
porém toda esta maneira de gente, uma e outra, naquilo em que se criam tem uma
mesma alma e um entendimento. E prova-se pela Escritura, porque logo os
primeiros dois Irmãos do mundo, um seguiu
uns costumes e outro outros. Isac e Ismael ambos foram Irmãos, mas Isac
foi mais político que o Ismael, que andou nos matos. Um homem tem dois filhos
de igual entendimento, um criado na aldeia e outro na cidade; o da aldeia
empregou seu entendimento em fazer um arado e outras coisas da aldeia, o da
cidade em ser cortesão e político: certo está, que ainda que tenha diversa
criação, ambos têm um entendimento natural exercitado segundo sua criação. E o
que dizeis das ciências, que acharam os filósofos que denota haver entendimento
grande, isso não foi geral benefício de todos os humanos dado pela natureza,
mas foi especial graça dada por Deus, não a todos os romanos nem a todos os
gentios, senão a um ou a dois, ou a poucos, para proveito e formosura de todo o
universo. Mas que estes, por não ter polícia, fiquem de menos entendimento para
receberem a fé, que os outros que a têm, me não provareis vós nem todas as
razões acima ditas; antes, provo quanto polícia aproveita por uma parte, tanto
dana por outra, e quanto a simplicidade destes estorva por uma parte ajuda por
outra veja Deus isso e julgue-o. Mais fácil é de converter um ignorante que um
malicioso e soberbo. A principal guerra, que teve a Igreja, foram sobejos
entenderes: daqui vieram os hereges e os que mais duros e contumazes ficaram;
manou a pertinácia dos judeus que, nem com serem convencidos por suas próprias
Escrituras, nunca se quiseram render à fé; daqui veio dizer S. Paulo: Nós
pregamos a Jesus Cristo crucificado, aos judeus escândalo e às gentes
estultícia. Dizei-me, meu Irmão, qual será mais fácil de fazer? Fazer crer a um
destes, tão fáceis a crer, que nosso Deus morreu, ou a um judeu, que esperava o
Messias poderoso e Senhor de todo o mundo?
(Diálogo sobre a Conversão do Gentio, Lisboa, IV Centenário da
Fundação de São Paulo, 1954, p. 88-89, 93-95).
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:
MASSAUD, Moisés. Origens e formação. In: MASSAUD, Moisés. A literatura brasileira através dos textos.
São Paulo: Cultrix. 2007. p. 28-30.
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Nóbrega e Anchieta com a tribo dos Tamoios
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